Hugo santos: vinte e oito anos. Um escritor novo, uma escrita nova.
Entre o nada e a catástrofe conduz o leitor, num discurso formulado na primeira pessoa, a uma estranha deambulação pelos caminhos da mente. É a mente, enquanto processo de articulação do pensamento, o objecto/sujeito de estudo deste livro. A visão do mundo é assim uma espécie de concatenação entre os dados da efabulação do pensamento e os dados fornecidos por uma certa interpretação, não do real observado, mas dos sinais que esse real deixa entrever apenas aos eleitos.
A novidade deste discurso reside fundamentalmente nesta capacidade de captar os interstícios do espaço/tempo e de os deixar exarados quase de forma testemunhal, documental, nas imagens quase transparentes de tanta genuinidade.
ANDA-SE PELAS RUAS COM AS PERNAS A TREMER., é uma frase que surge reiteradamente porque é na reiteração, quer da sua semanticidade, quer na reiteração da sua presença visual ( a maiusculização),que se dá a revelação. De quê? Da eminência de catástrofe. Ao longo do texto há como que uma anaforização deste conceito, há como que uma necessidade de se evidenciar esta descoberta em forma de aviso ao outro. E as frases em que ele está contido são muitas:
A todo o instante altera-se o mundo
A todo o instante altera-se a ideia que do mundo se tem
A todo o momento pode acontecer a catástrofe
A catástrofe pode eclodir a qualquer instante
Não se sabe o que nos reserva o futuro
A catástrofe está algures. Nalgum sítio se esconde.
Curiosamente, este sujeito enunciador, que é um misto de narrador lírico autodiegético constata ainda que: a infinidade de opções que o acaso tem é tanta que chega a baralhar-se a si próprio.
É, pois, neste espaço de inquietação que nos coloca este livro de Hugo Santos. É uma inquietação fundamentada na observação de factos, na conformidade do acaso, na mais elementar intuição. É uma fundamentação consolidada nos elementos fornecidos pela trivialidade e que, no entanto, constituem cesuras nas entranhas do tempo, linhas de descontinuidade, aliás já largamente evocadas noutros contextos, noutras ciências.
Assistimos assim a apontamentos como:
O guarda-redes foi rápido nos seus reflexos e fez uma defesa espectacular. Minutos antes era um filho da puta.
A menina-baloiço que está alheia a tudo e baloiça com mais força ainda
Os pessoas que vivem o seu dia-a-dia sem medo
O Vesúvio que pode explodir a qualquer momento
A guerra no Médio-Oriente ….
O escritor é aqui um iluminado, um inspirado pelo espírito da própria linguagem, linguagem que está também tecida de descontinuidades, cuja natureza dialogada tem menos expressão do que o longo monólogo interior, como se, no absurdo do conhecimento, existisse a consciência de que se fala para um interlocutor que não quer ser informado, um interlocutor que existisse numa outra dimensão. O que se passa com a linguagem é o mesmo que se passa com as fórmulas matemáticas: constitui um mundo em si mesma. E exprime, antes de mais a sua própria natureza. Então, apenas alguns, iniciados ou eleitos, acedem, primeiro à natureza desse mundo, depois à sua capacidade simbólica.
A escrita, na sua fragmentária natureza, na sua poeticidade, eleva as coisas do mundo a uma natureza superior, perspectivando uma totalidade. O fragmento, que é a essência do poético, acolhe as manifestações múltiplas do ser que, por vocação, aspira à essencialidade. O paradoxo que Hugo Santos apresenta nesta obra explica-se através do Princípio da Razão heidegeriano: “tal como o princípio da razão, todo o fragmento tem um lugar a partir do qual fala e que é uma das pontes de relação presença/ausência, velamento/desvelamento, … constituição do ser que se abre e se fecha no mistério ontológico das coisas”.
Maurice Blanchot refere também que a existência fragmentária é pressuposto incondicional de toda a escrita. O fragmento da escrita e o instante da existência caminham a par, como se a vivência do instante captasse o momento efémero da eternidade: o instante da criação tão intenso como o instante da destruição.
Hugo Santos, de forma enigmática, direi mesmo, codificada, elabora, no instante da escrita, a vidência da totalidade; configura, nos meandros da aparência dos dias sempre iguais, a eminência da catástrofe. O que é a catástrofe? É precisamente a antítese da ordem. Caos e ordem: duas faces da mesma moeda.
Hugo Santos, um escritor novo de uma escrita nova, deixa-nos nesta inquietação da eminência da catástrofe, direi mais, a inquietude do ser perante a sua própria existência, e afirma:
Os artistas não são espelhos…quando muito são pedaços de catástrofes e por isso as sabem relatar tão bem.
É um conto, nada convencional. Aliás, não é por acaso que o título é:
Entre o nada e a catástrofe & Bónus: um pequeno conto de almofariz cor-de-laranja, e que a epígrafe diz: Aos pastéis doces das avós, para os netos e quem mais vier…
O escritor dá-nos uma forma de sair desta inquietação e à maneira de Kusturica, constrói um microcosmos onde tudo se pode vivenciar sem os constrangimentos do aqui e do agora.
Sair para fora desses constrangimentos lembra a frase do livro anterior que seleccionei:
As lagartixas fazem-nos sempre sorrir.
É verdade. Hugo Santos, tal qual a lagartixa, ou as laranjas que têm asas de avestruz e bicos de pinguim com toques de galos de Barcelos faz com que saibamos sair dos limites impostos ao ser, à existência, e partamos à descoberta de novas formas de vida, quiçá melhores, quiçá piores. Sobretudo diferentes.
Hugo Santos, um escritor novo duma escrita nova, dá início, com esta obra, a um percurso de excelência
Maria Helena Padrão
1 comentário:
"Anda-se pelas ruas com as pernas a tremer"... quem como eu sabe o que isso é...Na incerteza encontra-se a esperança mas também o medo... Um beijo...Belo trabalho o teu
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